A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, berço da operação e com 400 inquéritos em andamento com várias frentes de investigação, como casos envolvendo empreiteiras, empresas estrangeiras e multinacionais que firmaram contratos com a Petrobras, segundo informações obtidas pela Reuters, enfrenta pressões em meio à discussão sobre o fim do grupo em menos de um mês.
Há cerca de 200 inquéritos abertos pela polícia e outros 200 pelo Ministério Público Federal, de acordo com fontes. Existem ainda apurações sobre lavagem de dinheiro com galerias de arte e iniciativas sob sigilo e inéditas que envolvem políticos que perderam foro privilegiado, além de tratativas sobre eventuais acordos de delação premiada e de leniência em curso.
Essas linhas de investigação da força-tarefa de Curitiba podem ser afetadas caso o procurador-geral da República, Augusto Aras, um crítico antigo da Lava Jato, decida não renovar até o dia 10 de setembro a designação dos procuradores do grupo.
O debate sobre a prorrogação da força-tarefa ocorre no pior momento da operação, admitiram fontes envolvidas.
Entre os vários pontos de atrito recentes entre apoiadores e críticos da Lava Jato estão pedidos para afastar o coordenador da força-tarefa em Curitiba, Deltan Dallagnol, suspensos pelo Supremo Tribunal Federal; a derrubada recente de decisões sobre a Lava Jato no Supremo e a possibilidade de novos reveses, inclusive em processos que envolvem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; o aumento das críticas à operação no Congresso com ameaças de CPIs, e a aproximação do presidente Jair Bolsonaro com parlamentares do centrão, muitos deles alvos da operação.
Atualmente, são 14 procuradores que atuam com dedicação exclusiva e 45 servidores auxiliando a força-tarefa de Curitiba, que continuam a trabalhar remotamente desde 15 de março e sempre se reunindo virtualmente ao menos uma vez por semana devido à pandemia do novo coronavírus.
O grupo quer seguir com as investigações e argumenta que, além de uma série de inquéritos para tocar, tem tido um histórico eficiente: até julho de 2020, segundo dados obtidos pela Reuters, foram recuperados quase 15 bilhões de reais aos cofres públicos; firmadas 209 delações premiadas e 15 acordos de leniência; houve 71 fases, 532 pessoas acusadas criminalmente em 125 denúncias; 263 condenações de 165 pessoas.
“O modelo de forças-tarefas é usado no mundo inteiro para investigar e atuar contra esquemas criminosos complexos. Um procurador sozinho não dá conta de todo o trabalho. Os números mostram que o modelo é eficiente e compensa”, disse o ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro Sergio Moro à Reuters, exaltando os números da operação.
Por ora, segundo fontes ligadas a Aras, não há uma decisão sobre prorrogar a força-tarefa de Curitiba.
“Enquanto pudermos entregar coisas relevantes, a força-tarefa tem que ser mantida”, disse um dos integrantes da força-tarefa de Curitiba à Reuters, sob a condição do anonimato, diante da sensibilidade do assunto.
No fim de julho, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, abriu uma consulta para saber quais procuradores teriam interesse de fazer parte de forças-tarefas. O interessado terá de acumular o trabalho da força-tarefa com o que desempenha atualmente e precisará do aval do coordenador da apuração —em Curitiba, a aquiescência é dada por Deltan Dallagnol.
Jacques destacou na consulta que o conjunto das forças-tarefas é maior que as unidades do MPF em 20 Estados, entre eles Amazonas, Mato Grosso e Distrito Federal. Pelas contas, segundo uma das fontes, são de 65 a 70 procuradores nesses grupos. O teto de gastos tem impedido o crescimento do número de procuradores, acrescentou o vice-procurador.
Outra questão também é o custo das forças-tarefas. Em 2018, as despesas com diárias e passagens foi maior do que qualquer procuradoria no país e há também o gasto de 3,7 milhões de reais em gratificações pagas a procuradores por acumularem o trabalho dos colegas que estão cedidos aos grupos.
“Essa nova realidade constitucional impõe ao Ministério Público Federal uma nova racionalidade no enfrentamento de suas prioridades e na sua dispersão territorial”, considerou Jacques.
Uma fonte ligada a Aras —procurador-geral escolhido por Bolsonaro fora da lista tríplice da categoria— contestou o argumento de eficiência usado pela Lava Jato de Curitiba. Destacou que o dinheiro devolvido pela operação não vai para o caixa do MPF e que essa é a função do próprio procurador.
No embate com a força-tarefa de Curitiba, Aras chegou a dizer que haveria uma “caixa de segredos” no grupo com informações fora do sistema do MPF, fala repudiada pelo grupo. Durante o recesso do Judiciário, a PGR chegou a obter uma liminar do presidente do STF, Dias Toffoli, para ter acesso ao banco de dados das Lava Jato de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Depois, o relator da operação no Supremo, Edson Fachin, barrou esse repasse.
Fora do MPF, há também críticas sobre a força-tarefa. Investigado na operação perante o Supremo, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), vê excessos e respaldou críticas de Aras à operação. Recentemente, em entrevista ao jornal O Globo, o filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), disse que as investigações da operação tentam fazer “gol de mão”.
Embora não tenha questionado a ação, Bolsonaro tem se mantido em silêncio quanto à Lava Jato, após efusivos elogios desde a época da campanha eleitoral de 2018. Afirmou há semanas numa rede social que não respondia por operações conduzidas por outros Poderes.
“Qualquer operação, de combate à corrupção ou não, deve ser conduzida nos limites da lei, e assim tem sido feito no meu governo”, disse Bolsonaro no Twitter. “Quanto às operações conduzidas por outro Poder, quem responde pelas mesmas não sou eu.”
Para um ministro do STF, esse modelo de gestão de forças-tarefas tem dado sinais de problema, e Aras tem atuado para tentar melhorar a governança. “A parte quer mandar no todo”, criticou.
APOIO POPULAR
Apesar das críticas e pressão pelo seu encerramento, a Lava Jato em Curitiba conta com amplo apoio na sociedade. Sondagem divulgada pelo Instituto Paraná Pesquisas apontou que 78,1% dos entrevistados são favoráveis à continuidade da grupo ante apenas 15,8% contrários —6,1% não opinaram. A sondagem ouviu 2.260 pessoas em todo o país, entre 11 e 15 de agosto.
Integrante do Grupo Muda Senado, que apoia a Lava Jato, o senador Major Olimpio (PSL-SP) disse que há um movimento que envolve segmentos dos três Poderes e também interno da PGR para esvaziar a operação, contestar e anular julgamentos e paralisar investigações. “Claro que há hoje uma campanha de satanização da Lava Jato”, afirmou ele.
Também integrante do Muda Senado, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) acredita que se há excessos, caberia à Corregedoria do MPF avaliar. Há procedimento neste sentido aberto no órgão. “As condições para não se renovar a força-tarefa estão sendo dadas”, disse o senador.
Randolfe e Olimpio participaram recentemente de uma conversa virtual com Aras na qual disseram que o procurador-geral não se comprometeu com a prorrogação do grupo. Procurado pela Reuters, o procurador-geral não se pronunciou.
Entre as possibilidades, segundo fontes, a PGR estuda se mantém o grupo, se o fatia ou coloca-o subordinado à Unac (Unidade Nacional Anticorrupção) —órgão que poderá ser criado para chefiar as forças-tarefas— ou até mesmo substituí-las. O debate sobre a criação da Unac está sendo travado no Conselho Superior do MPF, o principal órgão administrativo da instituição.
A possibilidade de se criar uma estrutura que pode ser ligada diretamente à cúpula da PGR preocupa integrantes da operação. Dois deles concordam com o fim da força-tarefa e até se atrelar as apurações à Unac, mas desde que haja uma autonomia em relação ao procurador-geral.
“Em nenhum momento, os atuais membros das forças-tarefas foram contra essa nova estrutura da Unac”, disse um procurador que atua na Lava Jato. “Queremos uma estrutura que funcione independentemente de quem seja o procurador-geral”, completou.
Procuradores da Lava Jato têm conversado com integrantes do Conselho Superior do MPF a fim de garantir —em caso de extinção das forças-tarefas— que procuradores continuem a conduzir as apurações, segundo uma das fontes.
Duas fontes admitem haver incômodo dentro e fora da instituição com o nome Lava Jato e até não se preocupam com o fim desse uso. “Não precisa se prender nisso, querem mudar o nome, dê outro”, disse uma delas.
No grupo, segundo uma fonte, há quem veja que o procurador-geral, com suas críticas à Lava Jato, pode, no final, estar prestando um serviço à narrativa de Lula, que busca tirar a legitimidade de uma eventual candidatura presidencial de Moro em 2022. Um interlocutor de Aras contesta essa avaliação. “Se há esse tipo de leitura, é um erro em princípio. A força-tarefa está querendo se colocar como cabo eleitoral?”, questionou.
Para Moro, que não comentou essas discussões, a operação representou o fim da tradição de impunidade da grande corrupção no Brasil, na esteira do caso do mensalão, julgado pelo Supremo. Disse que quando juiz sempre decidiu com base na lei e em provas.
“Nunca houve qualquer política. Nunca tive questões pessoais com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, destacou, citando que a sentença que deu sobre ele —a condenação em 2017 no caso do tríplex do Guarujá— foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça.
“A Lava Jato foi o produto de uma ação das instituições de Estado, várias delas, em várias instâncias, inclusive do Supremo Tribunal Federal. Como ela foi muito abrangente, despertou vários inimigos que, por vezes, são pessoas politicamente poderosas. Algumas críticas são compreensíveis e devem ser consideradas, outras são motivadas por interesses não coincidentes com a aplicação da lei”, concluiu.
ERROS E AVANÇOS
Em entrevista à Reuters, o professor José Eduardo Faria, docente no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas, afirmou que a força-tarefa de Curitiba cometeu erros, citando inexperiência de integrantes em como lidar com novos fatos, uso e abuso de interpretações baseadas em princípios e trocas de informações, uma referência às mensagens da chamada Vaza Jato.
Contudo, Faria avalia que isso não é motivo para enterrar a Lava Jato ou a figura jurídica das forças-tarefas. Para ele, houve um saldo positivo de avanços com as investigações. “Os excessos não autorizam a destruição da Lava Jato”, disse.
O professor da USP e da FGV disse que um traço comum nas forças-tarefas é a presença de procuradores e juízes que estudaram no exterior e tiveram contato com uma concepção do direito penal anglo-saxônica, baseada em princípios e conceitos mais abertos, que se choca com a cultura do país que é franco-romano-germânica, com tipos penais claros.
O docente disse que o “pecado mortal” da força-tarefa foi a ida de Sergio Moro para o governo Jair Bolsonaro. Segundo ele, ao haver uma “evidente vinculação” de Moro com os procuradores, o ingresso do ex-juiz no governo fez com que eles perdessem seu “grande trunfo” e “capital simbólico”.
“No momento em que o então juiz Sergio Moro aceitou ser ministro da Justiça de um presidente sem biografia, que foi eleito por circunstâncias que não cabe agora (discorrer), naquele momento ele, de certo modo, tirava da Lava Jato a ideia de que era uma operação que era absolutamente isenta, objetiva, sem envolvimento partidário”, disse.
“E isso enfraqueceria a ideia de uma força-tarefa do Ministério Público, abriria caminho para que houvesse uma ruptura interna dentro do próprio Ministério Público Federal, como está acontecendo, e isso geraria uma pressão da classe política contra as forças-tarefas de modo geral”, completou.