Tive o privilégio de encontrar, numa estante onde se lia “Grandes Poetas”, aqui em Curitiba, numa livraria da Rua XV, o livro de José Sarney. Imediatamente fui ao encontro do poeta, dividindo-o ao meio, numa tentativa de separar o político do lírico, o homem público do feitor de versos, onde, em alguns poemas subliminares, Sarney recicla infortúnios da vida pública e pessoal, convertendo-os em humus, a fênix orgânica da vida: “Dias de glórias e clarins/noites de suicídios./ Dias de paz, saúde e esperanças/ noites de guerra e desamor./ A tudo rendi graças,/ no vau dos dias”. Perfeito! Era o mote para entrevistá-lo através de seus versos. Sei que tal atitude minha vai agradar alguns e desagradar outros. Porém, acredito que tenha criado uma forma de conhecer mais fundo o poeta, através do que ele expõe, publicamente, em seus livros. Afinal, respira-se DNA em “Saudades Mortas”.
Ele consegue a proeza de nos repassar momentos líricos que impressionam, como se ali fosse contada uma história pessoal de amores, dores e glórias. Foi por isso que escolhi esse livro para com ele, conversar nesta inédita entrevista, onde o interlocutor é a matéria dinâmica, escrita em parágrafos solfejados diante de uma partitura insone: “As espatódeas (…) quando morrem,/ permanecem vermelhas/ para enfeitar/ os gramados secos/ nos frios de julho (…)”, às págs. 77.
No fundo, quis ler, ouvir e analisar o pensamento do intelectual José Sarney, onde versos bárbaros se misturam a decassílabos, redondilhas menores ou hexassílabos, no caldeirão da magia da prosa poética, que surfa literalmente em redemoinhos quase fantásticos, dispostos a nos contar fatos, momentos e histórias íntimas. “Voilà, poeta!”
Bem-vindo José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, o José Sarney, amado por uns, odiado por outros, nas cercas limítrofes, cármicas e ideológicas de cada um.
A ENTREVISTA
“Serei eterno, sem peso para trás, nem sonhos para longe”. (Às pgs. 131).
Mhario Lincoln: O que lhe sobrou da Infância, José Sarney?
José Sarney: Canas, as flores selvagens. Caducas trepadeiras, espinhos podres. Ramadas de são-caetano. Os velhos quintais chorando de abandono, as cercas apodrecidas, currais aleijados e, no céu, uma cor diferente. Pela primeira vez vi o infinito: ele era da cor das estrelas. (Às págs. 31).
MHL: Por que voltou?
Sarney: Abandonei os frangalhos para voltar. Largar o passado, o céu e as amarras. Recolher os agasalhos desse sonho de garras, tronco e galhos. Abandonar os campos de mostarda, o eterno das feridas, o medo de sorrir. Voltei. Conta-me, S.Luís, histórias do passado e deixa-me chorar nos rios do teu corpo. Serei eterno, sem peso para trás, nem sonhos para longe. Tenho uma noite, uma estrela e o tempo de rever-te. Abram-se as barrancas das velhas amizades e a lembrança das moças que amei. (Às pags. 131).

“Entrevistas com Livros” é marca depositada.
MHL: Mesmo com tanta gente ao seu derredor, já sentiu o amargor da solidão?
Sarney: Esbarrei andarilho em tristes olhos. Monólogos de outros. Perambulam nos lábios e na multidão que corta os sinais. Solidão, sem mão a quem apertar, verso para dizer, olhar para olhar cada coração abrir, olhos, bocas, ouvido, nada. Solidão do silêncio, corrosão do afeto, convite repetido para morrer, relâmpago de um instante em que o mundo se apaga. Solidão da cidade vazia, do domingo deserto, da cortina fechada, do encontro não marcado. O passar um carro, um ruído longe, um som de violino, uma televisão ligada. No bar do hotel, uma mulher espera um encontro com um homem que não chega e fuma um charuto com lembranças da Jamaica. (Às págs 145).
MHL: Na espontaneidade de seus versos, há muita coisa que cala fundo, quando o mote revive momentos antanhos. Fale-me, pois, sobre um desses momentos: o de sua partida para o futuro. Deixando a rua de barro, de cavalos e de peixes lodosos….
JS: Nasci nesta rua de cavalos; comi pó e barro, peixes de água lodosa, pescados nas madrugadas molhadas. Vieram dias que docemente me induziram a viver, e vivi. Buscando forças que me levaram a partir e nelas fui embora como quem apanhava um barco de velas para enfrentar o mar. Estou íntegro. Sou carne do meu sonho e alma do meu encanto que amou, conheceu o medo, a salsa, a alegria, e a chama dessa luz que se apagou no vento azedo da maresia do tempo. (Às págs. 33).
MHL: Pode um poeta amar sem amor?
JS: “Na cama, entregue a sonhos e lembrares, delírios de histórias e antigas perdições. O relembrar desejo e tentações desse corpo de glórias e cantares. Recordar na carícia dos amares tudo que se acabou no mar das ilusões, os seios tristes e mortas seduções do encontro e do perder-se nos vagares. Gastar o tempo e o gosto de sentir o não-sentir do próprio suspirar entre gestos e gestas de mentir. Sussurrar e repetir, beijar, o construir do nada entre sorriso e dor: o gosto amargo do amar sem amor. (Às págs 111).
MHL: Como seria então algo que descrevesse o amor, amado, de um poeta?
JS: Amo por que te amar, porque de amor não se pergunta, para amar o amor sem perguntar, se é sombra e fantasia o desejo e o sonho de buscar. Encantos e sendas que andei sem encontrar quente corpo entre tardes e noites de juntar a tua carne à minha neste gosto do forte renovar o amor amado, peles agarradas, uma só carne e chamas. (Às págs. 85).
MHL: Sobre a Canção Maior para Roseana?
JS: “Há em minha sombra, agora, a claridade de pequeninos gestos construindo o tempo, invadindo o campo dos meus olhares com as nuvens de pássaros, as canções vivas de aboios velhos, garças, guarás vermelhos de asas abertas, pássaros boiando no espaço riscando nomes, em tudo: a presença de teus olhos, filha. Já o barco da noite me descobre com falas de acalanto e lendas nascem, os príncipes, dragões e estrelas onde o lago é mágico e existe o fantástico jogo das histórias simples para os teus ouvidos. A velha bruxa, danças e modinhas e o polichinelo governa o tempo navegando nas águas da tua companhia. Há no meu olhar nas tardes, nas manhãs nas ruas, nas casas, no mar, o espaço, a vida e o encanto de tua lembrança. Todas as coisas trazem teus pequeninos olhos e as árvores, os pássaros e os incensos falam de tua inocência. E a madrugada com teu chamado ao mundo, na menina que saúda o dia, arranca a palavra Amor dos seus abismos para entregá-la indestrutível e pura a tuas pequeninas mãos. Anjo e pássaro agora sou. O teu sorriso me prolonga além do dia, além da noite, além da morte, e chega aos infinitos da esperança porque agora, está em tudo, nas minhas mãos, no meu andar, no meu morrer, no meu silêncio, nas minhas lágrimas, na face do mundo: o sorriso de Roseana. S.Luís, 9.09.1953. (Às pags 129).
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