Ao ordenar o bote contra advogados, o juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, promoveu um verdadeiro “arrastão cautelar”, nas palavras da OAB, dando poderes praticamente ilimitados para a autoridade policial apreender o que bem entendesse nos escritórios e residências.
O juiz chegou a afirmar, na decisão autorizando as buscas, que elas deveriam observar as prerrogativas da advocacia. Ou seja: a justificativa deveria ser individualizada e fundamentada, e o objeto das buscas deveria ser específico e relacionado à investigação. Nada disso aconteceu.
Em reclamação protocolada no Supremo Tribunal Federal, a OAB destaca o caráter genérico das fundamentações e as autorizações de apreensão praticamente ilimitadas de materiais que não têm qualquer relação com a investigação de supostos desvios da Fecomércio (que, aliás, nem deveriam ser julgados pela Justiça Federal do Rio).
Os executores dos mandados de busca e apreensão foram autorizados por Bretas a arrecadar nas diligências invasivas que realizaram “quaisquer documentos, mídias e outras provas encontradas relacionadas aos crimes de corrupção passiva e ativa, peculato, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e/ou documental, crimes contra o sistema financeiro nacional e organização criminosa”.
Segundo a OAB, ao invés de delimitar as buscas, a ordem concedeu poderes amplos para que fosse apreendido qualquer objeto que a Polícia Federal, o Ministério Público ou a Receita julgassem de interesse para a investigação.
Em outro trecho, abrindo mão de qualquer referência “aos ilícitos narrados nessa manifestação” e sem qualquer limitação temporal, os executores receberam autorização para arrecadar “HD´s, laptops, smartphones, pen drives, mídias eletrônicas de qualquer espécie, arquivos eletrônicos de qualquer espécie, agendas manuscritas ou eletrônicas, dos investigados ou de suas empresas, quando houver suspeita que contenham material probatório relevante, como o acima especificado”.
As autoridades policiais puderam, portanto, apreender material relacionado a toda a vida profissional dos advogados e os registros de seus escritórios de advocacia contendo dados sigilosos relacionados a seus clientes e a outros advogados não investigados. Todos esses dados estão protegidos pela lei e pela Constituição, e não poderiam ser sujeitos a uma ordem tão genérica, afirma a OAB.
Outro trecho da decisão dá ainda poder para que sejam apreendidos “arquivos eletrônicos pertencentes aos sistemas e endereços eletrônicos utilizados pelos representados, além dos registros das câmeras de segurança dos locais em que se cumpram as medidas”.
“Aqui as medidas invasivas ultrapassaram em muito as violações perpetradas contra as garantias e as prerrogativas dos advogados e dos escritórios de advocacia atingidos, para alcançar por período de tempo ilimitado o controle das imagens das pessoas (clientes ou não dos escritórios) que entraram ou saíram dos prédios comerciais em que situados os escritórios ou mesmo que entraram ou saíram das dependências dos escritórios”, destaca a OAB na petição. “Também alcançaram todas as pessoas que entraram ou saíram, por um período de tempo ilimitado, das residências dos investigados que sofreram buscas e apreensões.”
Como era de se esperar, as buscas ordenadas de forma ilegal foram cumpridas também de forma ilegal e sem precedentes. Em relatos à ConJur, advogados narraram diversos desses abusos, que coincidem com as denúncias registradas pela OAB por outros envolvidos e levadas agora ao Supremo.
Para começar, as buscas residenciais não foram acompanhadas por representantes da Ordem, uma prerrogativa dos advogados para garantir que o cumprimento dos mandados seja efetuado dentro da legalidade e apreendendo apenas material relacionado à investigação em curso.
Os mandados, segundo os relatos, não tinham cópias ou trechos da decisão judicial que os autorizava. Ainda por cima, uma das residências foi invadida pela PF pela porta dos fundos, e os policiais entraram no quarto em que o advogado dormia com sua esposa.
A OAB ainda destaca que, nas reclamações enviadas às seccionais respectivas dos alvos, todos eles relataram que os policiais e procuradores apreenderam “telefones celulares (smartphones), HDs, laptops, pen drives, mídias e arquivos eletrônicos, além de numerosos documentos e arquivos físicos, sem que se permitissem aos advogados e aos escritórios varejados reproduzir e espelhar dados e informações indispensáveis ao exercício regular de suas atividades”, o que gerou a paralisação completa das atividades dos escritórios.
Abuso sobre abuso
Na quarta-feira (9/9), Marcelo Bretas autorizou o maior bote contra a advocacia já registrado no país, ordenando o cumprimento de 75 mandados de busca e apreensão contra escritórios, casas de advogados e empresas (mais do que os 50 estimados anteriormente, e 33 deles em endereços residenciais).
A ordem foi considerada uma tentativa de criminalização da advocacia pela comunidade jurídica. Além disso, tem erros de competência, já que a Fecomércio é uma entidade privada e deveria ser investigada pela Justiça Estadual; e de imputação de crimes, já que seus dirigentes não podem ser acusados de corrupção nem peculato. Em outra vertente há quem entenda que, por pretender investigar ministros do STJ e do TCU, a competência seria do STF.
Entre os abusos registrados pela decisão, há duas ordens de busca e apreensão em casas de desembargadores — um deles com mandato no TRE de Alagoas, e outro casado com uma advogada que foi alvo. Especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que apenas o Superior Tribunal de Justiça poderia ter emitido as ordens.
Uma semana depois do ataque, um grupo de seccionais da OAB protocolou uma reclamação no Supremo Tribunal Federal contra os abusos e violações das prerrogativas cometidos por Bretas.
O bote se baseia na delação do ex-presidente da Fecomercio do Rio de Janeiro, Orlando Diniz. O empresário já foi preso duas vezes e vinha tentando acordo de delação desde 2018 — que só foi homologado, segundo a revista Época, depois que ele concordou acusar grandes escritórios de advocacia. Em troca da delação, Diniz ganha a liberdade e o direito de ficar com cerca de US$ 1 milhão depositados no exterior.
Trechos vazados da delação de Diniz ainda mostram que o empresário foi dirigido pelo Ministério Público Federal do Rio no processo. Em muitos momentos, é uma procuradora quem explica a Diniz o que ele quis dizer. Quando o delator discorda do texto atribuído a ele, os procuradores desconversam, afirmando que vão detalhar nos anexos.
Bloqueio desastrado
Escritórios de advocacia também relataram ter tido valores bloqueados de suas contas correntes. Nos autos, Bretas admitiu ter ordenado o sequestro, mas afirmou que era para ter acontecido no dia da operação, como é de praxe. Já que o bloqueio não constaria do sistema, ele levantou o sigilo sobre o pedido, expondo os alvos da operação — isso após a divulgação de notícias, da Folha de S.Paulo e da ConJur, de que o bloqueio teria sido efetivado.
Segundo Bretas, a mudança do sistema BacenJud para o SisbaJud ocasionou um erro técnico, e o bloqueio não foi feito. “Somente no dia seguinte, ao que tudo indicava, a ordem teria sido finalmente transmitida aos bancos, porém até hoje não consta do Sisbajud a confirmação de que a ordem foi cumprida”, afirmou, justificando o levantamento do sigilo.