ORQUÍDEA SANTOS: Em recente palestra para alunos de Letras o jornalista e poeta, presidente da Academia Poética Brasileira discorreu sobre um tema muito forte e polêmico. Mas “com conceitos pessoais e intransferíveis“, como ele fez questão de frisar. Mhario falou sobre ‘la reconnaissance académique’ do poeta que se tornou maranhense pela pena, José Chagas. A plateia atenta a esse tema muito forte, questionou situações e evidências. E por quê? Segundo um dos participantes, as leituras expostas nas redes de informação, nunca olharam o “Chagas por esse prisma. Sempre repassaram informações da felicidade conjugal plena entre ele e alguns outros literatos, nascidos na terra de G.Dias”. Abaixo, reproduzimos na íntegra, a essência do que disse Mhario Lincoln:
CHAGAS e ‘la reconnaissance académique’
*Mhario Lincoln
Na primeira oportunidade que tive de conversar com uma pessoa estudiosa da literatura maranhense – muito respeitada e aplaudida em Brasília – sobre o porquê de José Chagas não ter a mesma ‘reconnaissance académique’ de outros contemporâneos, escutei dele:
Logo depois da pergunta notei certa resistência dele em confidenciar outras coisas para mim; logo eu, um jornalista e curioso da literatura. Assim, pediu licença e deu de costas.
Na verdade, fugindo, eu, um pouco, do mesmo texto romântico e regional de sempre, acho que José Chagas surgiu no contexto como figura central na literatura maranhense, a partir dessa obra poética onde foram intercaladas facetas pouco utilizadas na década de 1970: a profunda compreensão do ambiente físico de São Luís do Maranhão, com nuances sociopolíticas muito fortes e com denunciantes insights; especificamente em “Maré Memória”, de 1973.
Acredito que a partir daí, Chagas passou a tecer uma narrativa lírico-gritante, onde encarnou a relação intrínseca entre o homem e o contexto social (no poema do mesmo nome) representado literalmente pela lama e pelo mangue, fato que transcendeu – naquele instante – ao regionalismo poético gonçalvino – até então, muito usado nas construções poéticas de alguns de seus contemporâneos poetas.
osé Chagas passou, então, através desse novo modo elaborativo, a abordar questões muito mais universais da existência humana. Por isso a construção lírica de “Maré Memória” foi ‘quase’ comprometida, pois as marcas indeléveis do contexto são, sem dúvida, as metáforas que associam o homem aos seres do manguezal, invisíveis, solitários, pobres e indigentes. Nos versos iniciais:
“Olha aí a palafita
Crescendo sobre a maré.
O homem que nela habita
Caranguejo ou peixe é.”
Desta forma, o poeta José Francisco das Chagas, nascido em Santana dos Garrotes – PB, 29 de outubro de 1924, portanto neste 2025 a completar 101 anos, se vivo estivesse, passou a estabelecer de forma direta, uma analogia entre o habitante das palafitas e os seres que se enterram na lama do mangue, revelando uma fusão entre o humano, o desumano, mesmo que natural fosse esse ‘inhumain’.
Essa representação simbólica evidencia a condição de marginalização e a perda de identidade, temas recorrentes em sua obra. E isso, com certeza, mexeu com algumas pessoas ligadas a parte política do mundo literário maranhense. E não agradou muito.
Mas, convido agora, para a mesma mesa o imenso Jomar Moraes, que um dia me confidenciou: “a poesia de José Chagas captura a essência do homem maranhense, inserida em um ambiente que é ao mesmo tempo abrigo e prisão, beleza e decadência”. Moraes era sensacional.
Pois bem! Essa dualidade explorada principalmente no poema “Maré Memória”, repito, onde o movimento da maré serve como metáfora, igualmente, para a fluidez da “memória e da existência”, nas palavras completadas de Jomar Moraes, explicita a estética adotada por Chagas para combinar tanto a simplicidade e a profundidade existencial, com uma linguagem acessível, sem sacrificar a densidade temática.
Por outro lado, há de se notar a perfeita regionalização do poeta paraibano e a sua adaptação ao ‘modus vivendi’ do cenário poético inserido em sua produção, com detalhes incríveis e referências sobre mangue e palafitas, muitas delas nas cercanias do braço do rio anil, ainda pululantes, 51 anos depois do poema ter sido escrito.
Tal observação realista só enriqueceu o texto ao situar o leitor em um local específico, mas com implicações praticamente universais. Tanto que o poeta Nauro Machado – outro, dos mais cultuados poetas maranhenses – observou que José Chagas – nessa lírica palafitária – transcendeu o particular para atingir o universal, “fazendo do mangue um símbolo da condição humana”. Perfeito!
Vale também notar que a estrutura do poema “Maré Memória”, com rimas alternadas e um ritmo cadenciado, reflete o movimento constante da maré, reforçando a temática central. As belas, enquanto arte, reproduções de imagens relacionadas à água e à lama acabaram criando uma atmosfera opressiva, evidenciando a luta do indivíduo contra forças além de seu controle, algo que é aplaudido até hoje.
Na minha opinião, Chagas buscou não apenas retratar a realidade social, mas também provocar uma reflexão introspectiva. E tal fato deve ter “ferido suscetibilidades…”, pensamento a mim revelado por um membro da Academia Maranhense de Letras, já falecido. Esse confidente tinha certa razão, mesmo que esses versos de Chagas, não se limitassem a uma crítica social direta.
Porém, “Maré Memória” explorou a dimensão existencial do ser humano; e isso foi mais que genial. Por essa razão, a beleza extraordinária do poema, pois essa abordagem o alinha a outros grandes nomes da literatura brasileira, como, por exemplo, João Cabral de Melo Neto, com quem compartilha a precisão na escolha das palavras e a profundidade temática. E mais: impossível não o incluir esse poema dentro dos parâmetros do estudo de Dominique Maingueneau, linguista francês e professor emérito da Universidade Sorbonne, com vasta obra publicada explorando a relação ‘entre texto e contexto social’.
Por isso, a influência de José Chagas na literatura maranhense – e deveria ser muito mais na literatura brasileira – é extremamente importante. Tanto que o escritor e ensaísta Wilson Marques em texto que li, diz com letras maiúsculas que “a obra de Chagas é um patrimônio cultural de São Luís, essencial para compreender a identidade e a alma maranhense”. Concordo plenamente porque, apesar dos anos depois, a poesia de Chagas não apenas retrata o Maranhão, como também contribui para a construção de sua memória literária forte e não invasiva.
Evoé, Chagas!
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira
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Referências:
MACHADO, Nauro. A Poética de José Chagas. São Luís: Editora Maranhense, 1978.
MARQUES, Wilson. “José Chagas e a Identidade Maranhense”. Revista Literatura Hoje, n. 12, 1990.
MORAES, Jomar. Entre o Mangue e a Maré: A Poesia de José Chagas. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 1985.
Dominique Maingueneau (1950). França.