EDITORIAL – CARLOS NINA
A defesa da efetiva igualdade de direitos das mulheres tem-se intensificado e ampliado. Diz-se efetiva porque teoricamente já existe há algum tempo, proclamada em declarações, tratados, constituições e outras normas. Antes, não existia nem teoricamente. O direito de votar é um exemplo. No Brasil foi reconhecido às mulheres somente a partir de 1932, pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro: “Art. 2º É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código.”
Um dos fatores que estimulou o incremento da luta das mulheres contra a discriminação histórica de que são vítimas no mundo inteiro foi a violência física, decorrente de terem, de um modo geral, compleição mais frágil.
A reação a essa circunstância que persiste implacável aqui e alhures é simultânea ao avanço feminino em outras áreas, dentre as quais a do trabalho, ocupando espaços profissionais nos quais o desempenho da mulher, não raro, supera o dos homens.
Essas conquistas, vistas por muitos como uma espécie de libertação, têm aberto caminhos para novas gerações, que passaram a usufruir das oportunidades por elas criadas.
Alguns dos movimentos feministas têm um discurso agressivo contra os homens, como se travassem uma verdadeira guerra de sexos. Outros, não. Estes, até proclamam a importância dos homens, em relação aos quais reivindicam igualdade de direitos, sem discriminações nem privilégios em razão do sexo de cada um.
Recentemente foi lançado no Tribunal de Justiça do Maranhão (28/8/2023), liderado pela desembargadora Sônia Amaral, o Grupo Maria Firmina, composto por magistradas (em atividade e na inatividade na função), visando a viabilizar a participação de mais mulheres no Tribunal.
Na trilha dessa reivindicação, o Conselho Nacional de Justiça, mais recentemente (26/9/2023), aprovou a alteração da Resolução CNJ n. 106/2010, à qual foi acrescido o artigo 1º-A, cuja redação prevê: “No acesso aos tribunais de 2º grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal.”
Se o termo paridade não ganhou novo conceito, fica difícil entender como consegui-la, na proporção proposta na norma. Igualmente curioso é constatar, lendo os considerandos da Resolução, que a regra se aplica aos tribunais do 2º grau, mas não se aplica nem mesmo ao próprio CNJ.
Entrando no tema, o magistrado Osmar Gomes, em artigo publicado em O Imparcial (São Luís, 23/24 de setembro de 2023), convida, no título: “Vamos falar de igualdade”. E opina: “Sem pretender qualquer tipo de carona na pauta da paridade de gênero, é preciso discutir, também, como tornar as Cortes de Justiça mais acessíveis para negros, indígenas e portadores de deficiência, por exemplo. Em um país em que as cotas raciais, confirmadas pelo próprio STF, ganharam status de norma, por que as mesmas não podem valer para o âmbito do próprio Judiciário? Penso que as instituições precisam ser reflexos da sociedade e, ainda que exista o ingresso meritório via concurso, sendo assim, é possível equilibrar as representações.”
À medida em que as conquistas vão se consolidando, vai-se esquecendo a contribuição de quem fez parte dessa trajetória.
A desembargadora Sônia Amaral, no TJMA, foi buscar alguém importante na luta contra as desigualdades e homenageou, no nome do Grupo – Maria Firmina -, uma personagem emblemática, mulher, negra, filha de ex-escrava. Maria Firmina dos Reis, maranhense nascida em São Luís (1825), foi “a primeira romancista brasileira”, em cuja obra, “o homem negro escravizado e, especialmente, a mulher negra quebram a narrativa de subalternidade cultuada pela sociedade escravista e assumem o seu próprio discurso”, verbalizando, através de seus personagens, “as palavras ‘livre’ e ‘liberdade’, quase 30 anos antes da Abolição”, como informa Agenor Gomes em seu livro Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil (São Luís, AML, 2022).
No que tange à violência contra a mulher, a Casa da Mulher Brasileira também não surgiu do nada. No Maranhão, movimentos de mulheres que atuavam com destaque nos anos 80, dentre os quais o SOS Violência, contribuíram para a criação da primeira Delegacia Especializada de Defesa da Mulher em São Luís.
A hoje desembargadora Nelma Sarney, então integrante do Conselho Seccional da OAB-MA e o representando, teve atuante participação nas primeiras discussões sobre a necessidade da criação da Delegacia da Mulher, das quais resultou um documento dirigido ao Secretário de Segurança, com recomendações para o melhor funcionamento da Especializada. O desempenho inicial da Delegacia foi fundamental para sua consolidação, graças à atuação exemplar da primeira Delegada, dra. Daisy Aparecida Gomes Ferreira, e sua adjunta, dra. Rosane Sena e Silva. Para Daisy Aparecida, a Delegacia Especializada cumpria “a função de diminuir o constrangimento que a mulher sofre ao ter que registrar queixa numa delegacia comum para um homem que pode naquele mesmo dia ter cometido um tipo de violência contra sua esposa. Quando isto acontece a mulher de vítima passa a algoz e normalmente é obrigada a conviver com todo tipo de comentário maldoso que lhe intimida numa denúncia posterior.” (Jornal A Ordem, outubro de 1987)
Em entrevista ao jornal A Ordem (edição de março/abril de 1988), quando esteve à frente da Delegacia da Mulher, a Delegada Rosane Sena informou que fora “criado também um albergue com alojamento e alimentação para abrigar as mulheres que, sofrendo violências em casa, ficam impossibilitadas de retornar. Elas permanecem no albergue até resolverem o problema ou encontrarem um local para morar.” A Delegada não ficava só na Delegacia. Levava “o trabalho da delegacia até às comunidades, atendendo convites de entidades de bairros para esclarecer qual o papel da delegacia e orientando as mulheres com relação à violência.”
Foi, para tanto, decisiva a iniciativa do então deputado estadual Dorian Menezes, ao propor na Assembleia Legislativa do Maranhão projeto para a criação de Delegacias de Defesa da Mulher em São Luís e nas maiores cidades do Estado, como Imperatriz, Bacabal e Caxias. Dorian enfatizou à época que as estatísticas não revelavam a realidade, “porque a maioria dos casos escapa à verificação pela falta de um órgão especializado, conduzido por mulheres, no qual a mulher, livre de constrangimento, possa relatar sua queixa ou apresentar sua denúncia.” (Parlamentar quer uma delegacia da mulher. Notícia no jornal O Estado do Maranhão, 22 de agosto de 1985). De acordo com a notícia, Dorian afirmava que a violência urbana tinha “alcançado insuportáveis níveis e que nessa escalada a mulher, segundo ele, tem sido a mais atingida.”
Na legislatura seguinte, à vista de óbices à instalação das Delegacias Especializadas de Defesa da Mulher, aprovadas no Parlamento Estadual, por proposta de Dorian Menezes, a deputada estadual Conceição Andrade apresentou projeto para funcionamento da Delegacia, que, enfim, foi instalada em São Luís, em prédio localizado no início da Rua do Egito, próximo à Avenida Beira-Mar.
Hoje se tem a Lei Maria da Penha, surgida exatamente pelo incremento da violência contra a mulher. Essa lei visa a acelerar o atendimento de proteção às mulheres. Para esse fim, é relevante a atuação do Ministério Público, em especial no uso das medidas protetivas de urgência, para a aplicação em defesa de quem realmente precisa de proteção, bem como a preservação da norma para que não seja usada como meio de vingança por pessoas inescrupulosas, insatisfeitas com seus relacionamentos afetivos.
O desvirtuamento no uso da Lei Maria da Penha não é raro. Fenômeno ao qual um eminente magistrado chamou de efeito colateral, expressão que usei para nomear um conto, inspirado em fatos, distinguido pelo TJMA com o 1º lugar no I Concurso Literário Maria Firmina dos Reis, lançado pelo desembargador Lourival Serejo, então presidente da Corte maranhense e atualmente presidente da Academia Maranhense de Letras.
O conto integra a Antologia de Textos Premiados – Poemas – Contos – Crônicas daquele concurso, publicada pelo TJMA (http://www.tjma.jus.br/bibliotecas/esmam/obras/303), bem como na Revista da Academia Maranhense de Letras Jurídicas, Ano VIII, edição nº 5, 2020-2022.
Advogado e jornalista.
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