Descontando opções risíveis, como uma imaginária convicção da própria inocência, o “eu não renuncio” de Michel Temer se alimenta de um acordo essencial com a TV Globo.
Ambos devotam um temor invencível pelo voto popular e não têm a menor disposição de correr o risco — contingência natural de toda democracia — de convocar uma eleição que possa questionar seu projeto de entrega das riquezas do país aos senhores de Londres, Paris e Washington, deixando algumas migalhas para uns poucos aliados locais.
Voltando aos fatos. Há dois dias, quando William Bonner abriu o Jornal Nacional chamando Temer de ex-presidente, a TV Globo, Fernando Henrique Cardoso e demais patrocinadores da deposição de Dilma Rousseff iniciaram o movimento de uma exótica transição sem custos. A fórmula é até grosseira: despejar Temer e escolher quem vai ocupar seu lugar.
Neste processo, vamos deixar de lado aparências e salamaleques. O mais importante é encontrar um candidato capaz de agradar à Globo — a única voz, entre tantas envolvidas, capaz de se fazer ouvir por uma parcela da população.
O projeto é livrar-se de Temer e de uma escória política que se tornou fonte permanente de instabilidade e risco de naufrágio, numa operação sem voto popular, entre amigos selecionados e fiéis, a ser respaldada pelo mais desmoralizado Congresso da história republicana.
Resumindo: querem devorar todos os pratos do banquete mas querem demitir os garçons e cozinheiro, a serem despachados sem piedade para as masmorras da República de Curitiba.
Ao dizer “não renuncio”, Temer mandou avisar que desse jeito está fora do jogo.
A decisão, que é uma surpresa apenas para quem não olhou a folha corrida dos convidados do golpe de maio-agosto, criou um novo fator de crise e contradição.
O sucesso de todo espetáculo de mágica exige rapidez e perícia para que a platéia não tenha condições de saber como foi o truque e voltar feliz para casa, neste doloroso Brasil de maio de 2017.
A ideia é reencenar uma versão — grosseira, sem refinamento — da velha parábola de dom Tomasi di Lampedusa, que no romance O Leopardo sintetizou a trapaça das ilusórias operações políticas em que tudo parece mudar só para que nada mude.
Esta é a trapaça do golpe dentro do golpe, onde senhores sem disposição para reconhecer os poderes soberanos do povo disputam o poder com ânsia, dinheiro e cinismo.
Afasta-se Temer, mas permanece a equipe econômica que arquitetou a austeridade de 20 anos, o desemprego, o desmanche dos programas sociais, a reforma da Previdência e os demais ítens do mesmo pacote, que a população rejeita com veemência mas garante o carinho e a simpatia do mercado financeiro. Assumindo a perspectiva da pós-democracia, mãe da pós-verdade, fala-se até num governo que preserve a política econômica como exclusividade do empresariado, reservando o dever de repressão e o direito de distribuir esmolas a autoridades eleitas.
O argumento para preservar uma política econômica que jamais obteve apoio nas urnas é que não se deve mexer na Constituição de 1988, santificada após tantos ataques de forma e conteúdo.
Só para recordar a nossos constitucionalistas: em seu artigo número 1, parágrafo único a Carta de 1988 informa que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Vamos raciocinar.
Embora a carta reconheça o lugar dos “representantes eleitos”, a desmoralização transforma um pleito indireto, no Brasil de hoje, num insulto à noção principal, à verdade original, de que “todo poder emana do povo.” Alguém discorda?
A verdade é que se procura empossar um presidente ilegítimo por segundo presidente sem ilegitimidade. Nem o sociólogo mais preguiçoso — que leu Max Weber, Emile Durkheim e Karl Marx em resumo de apostila — seria capaz de dizer que é uma solução boa para o país que rasteja numa longa crise.
A postura de Temer, claro está, não se baseia na presunção da própria inocência — incompatível com a linguagem de operadores do submundo político flagrada pelo gravador de Joesley Batista.
Trata-se da permanente luta pela auto sobrevivência, de quem não recebeu sequer uma oferta para deixar o cargo em segurança, depois de um inegável conjunto de serviços prestados a seus senhores. Só para dar um exemplo num episódio clássico.
Em 1974, Richard Nixon só deixou a Casa Branca, após um ano e meio de piruetas para safar-se das denúncias do Watergate, depois de um acordo que lhe garantiu anistia total contra qualquer crime que pudesse ter cometido — mesmo aqueles que nem tinham sido descobertos.
Festejando o primeiro aniversário do golpe num merecido ambiente de velório, Temer aposta na covardia política dos aliados da véspera perante todo e qualquer movimento popular para permanecer onde se encontra.
Com aquela perícia de quem se especializou em manobras pequenas em nome de interesses sempre menores, sabe que a insistência no voto indireto para escolha de seu sucessor desmobiliza os brasileiros, representa uma tentativa de esvaziar as ruas e pode lhe dar algum fôlego para sobreviver.
Este é o fundo da crise, hoje.
A primeira resposta a essa trama será vista nos próximos dias, com o crescimento das mobilizações que pedem: “Fora, Temer!”, “Diretas-já!”